quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sem o Sertanistas, teria sido pior

Certa vez li um depoimento do Marechal Candido Rondon no qual detalhava denuncia que ouviu, nos sertões do Mato Grosso, sobre o ataque de seringueiros armados contra uma aldeia dos índios Iranche. Ocorreu no início do século passado, antes da criação do Serviço de Proteção aos Índios, de 1910. Ficou conhecido como o massacre do córrego Tapuru:
Pela madrugada, ao recomeçar a cotidiana labuta daquela misérrima população, a celerada emboscada rompeu fogo, abatendo os que primeiro saíram das casas para o terreiro. Os que não morreram logo, encerraramse nas palhoças, na vã esperança de encontrarem aí abrigo contra a sanha de seus bárbaros e gratuitos inimigos. Estes porém já estavam exaltados pela vista do sangue das primeiras vítimas e nada os impedia de darem largas à sua fome de carnagem. Então, um deles, para melhor trucidar os misérrimos foragidos, resolveu trepar à coberta de um dos ranchos, praticar nela uma abertura e, por esta, metendo o cano da carabina, foi visando e abatendo uma após a outra as pessoas que lá estavam, sem distinguir sexo nem idade. Acuados assim com tão execrável impiedade, os índios acabaram tirando do próprio excesso do seu desespero a inspiração de um movimento de revolta: uma flecha partiu, a primeira e única desferida em todo este sanguinoso drama, mas essa embebeu-se na glote do crudelíssimo atirador, que tombou sem vida. A só lembrança do que então se seguiu faz tremer de indignação e vergonha. Onde haverá alma de brasileiro que não vibre uníssona com a nossa, ao saber que toda aquela população, de homens, mulheres e crianças, morreu queimada, dentro de suas palhoças incendiadas?
Os índios eram massacrados, e a iniciativa de Rondon com o SPI visava intermediar as relações entre os índios e a sociedade nacional, com o objetivo de proteger as nações indígenas.
Apesar da agência governamental, tanto o SPI quando a Funai (a partir de 1967), os ataques violentos e genocídios continuaram ao longo do século passado. Quando teve início a ocupação efetiva da Amazônia, a partir dos anos 1960/70, a grande diáspora de colonos sulinos bateu frente a frente com povos indígenas que viviam autônomos.
Nesse choque de civilizações, muitos povos foram extintos, ou tiveram baixas assustadoras de população. Sociedades inteiras foram dizimadas por gripes e doenças contraídas nesse contato.
No encontro ´´Memórias Sertanistas´´, realizado pelo Sesc Consolação, em São Paulo, alguns dos maiores sertanistas vivos contaram lembranças desse período difícil em que o País era comandado por mãos militares. Muitas histórias brutais que poderiam ter ocorrido nos idos de 1900, como a relatada por Rondon. Mas datam de poucas décadas, ou mesmo, poucos anos atrás.
Na linha de frente dessa fronteira, cabia aos sertanistas a difícil tarefa de proteger os índios do próprio Estado para o qual trabalhavam e da mesma sociedade que representam (genericamente chamada de ´´os brancos´´).
A linha mais distante dessa fronteira hoje em dia, mostrou o coordenador geral de índios isolados e de recente contato da Funai, Elias Bigio, são as quase 70 localizações onde há referencias de ocupação de povos indígenas sem relação direta com a sociedade nacional - os chamados índios isolados, ou autônomos. Nesses pontos, a Funai estabelece frentes de proteção, ocupadas por agentes públicos na defesa dos índios contra os colonos.
A reunião de grandes personalidades que passaram a vida defendendo os índios foi emocionante. O espírito aguerrido e idealista destes ´´grandes homens´´ e ´´grandes mulheres´´ (como as antropólogas Carmen Junqueira e Betty Mindlin, e a enfermeira Marina Villas Bôas) mostrou que sem a luta que foi travada, e por atos individuais, principalmente nos anos de chumbo, muitos dos 220 povos indígenas que existem hoje no Brasil teriam desaparecido.
Junto do mito do progresso, com as estradas, vieram doenças. Orlando e Cláudio Villas Bôas não conseguiram estancar o projeto de construção da BR 163 Cuiabá-Santarém, que passou pelo território dos Panara. Conseguiram, no entanto, contribuir num esforço para salvar os índios, mesmo que a mortandade do pós contato tenha sido uma das mais altas da história - nesse processo trabalhou também Odenir Oliveira.
Nascido e criado entre os Xavante, Odenir participou da ação direta de auto-demarcação das terras realizada pelos índios. Na ausência da presença mais efetiva do Estado, ele enfrentava as ameaças dos poderosos fazendeiros e seus exércitos de pistoleiros. Arrefecia o temor de emboscadas protegidos pelos próprios Xavante, que lhe deram exílio em suas terras da perseguições que sofria.
José Porfírio de Carvalho enfrentou a ira dos militares por obrigar respeito aos direitos dos waimiri-atroari, cuja estrada BR174 Manaus-Boa Vista traria os mesmos impactos da BR 163 - e além dela, ainda por cima, viria a barragem de Balbina e uma empresa de mineração.
Por mais de 130 anos, os waimiri-atroari travaram uma guerra desigual contra a sociedade colonizadora. Os índios atacavam, e mataram muitos que penetraram em seu território. Mas foi um combate que os levaria ao fim, até que se entregaram nos anos 1980, com paupérrimos 300 sobreviventes que pareciam saídos de um campo de concentração. Hoje somam cerca de 1.500 pessoas.
Também no rumo das estradas sofreu Afonso Alves da Cruz, que tentou correr antes da Transamazônica aniquilar os índios Arara. Não evitou todos os massacres, mas conseguiu garantir ao menos a sobrevivência do povo, que também se recupera demograficamente. Conseguiu também, realizar o contato pacífico com um dos grupos Arara sem que nenhum índio morresse por epidemia posterior.
Em Rondônia, Marcelo dos Santos e Altair Algayer conseguiram resgatar ao menos sete sobreviventes akunt´su e cinco kanoe, alem do ´´índio do buraco´´, cujos povos foram massacrados por fazendeiros na região de Corumbiara. Um tenebroso caso de genocídio que não chegou aos tribunais.
Na fronteira com o Peru, José Carlos Meirelles denuncia, incansavelmente, a exploração ilegal de mogno, que tem sido uma das principais ameaças aos índios isolados das etnia pano e mashco que vivem naquela região. Quando chegou no Acre, nos anos 1970, junto de Porfírio de Carvalho, não constava no mapa étnico oficial a existência de povos indígenas - apenas escravos de seringais sem identificação étnica.
Seja pela pressão do governo e da sociedade, que relutam em respeitar os direitos indígenas, seja contra o chumbo daqueles pioneiros das violentas frentes de expansão, os sertanistas sempre estiveram ao lado dos índios, tentando intermediar uma relação sempre desfavorável a eles.
O encontro no Sesc, celebrando os princípios agora centenários de Rondon, em meio a um processo de intensa transformação pela qual passa a Amazônia, assim como uma crise atual na questão indígena, com a paralisação das demarcações de terras, foi o momento para reflexões tanto sobre a situação de crise pela qual atravessa a causa indígena, quanto sobre o ideal de respeito às diferenças culturais descritos na Constituição Federal de 1988, mas que não tem sido levados em conta. Reflexões não animadoras. Porém necessárias.
Fizeram protesto pela demissão autoritária de Afonso, no início do ano, quando retornava de um período de trabalho junto dos Arara e foi surpreendido por ter seu nome numa lista de dispensa da reformulação da Funai.
Idealizaram retomar a Sociedade Brasileira de Indigenismo, que teve Porfírio de Caravalho e Odenir Oliveira como presidente e vice, e foi entidade que conseguiu frear abusos cometidos pela gestão da Funai na época da ditadura.
Na última campanha presidencial, que terminou domingo, o tema indígena praticamente não foi tocado - notaram todos os palestrantes. Segue sendo excluído de planos de governo, como ocorre historicamente. E na ausência de política de Estado que realmente se preocupe com a preservação e respeito ao modo de vida dos índios, mesmo frente à grandes obras de interesse nacional, os sertanistas são o bastião da ideologia humanitária de Rondon. A lei e o Estado, nesses rincões, muitas vezes são atos individuais, balizados pelo princípio maior de amor às sociedades indígenas.


Fonte:  TERRA MAGAZINE - SEM OS SERTANISTAS, TERIA SIDO PIOR

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4767406-EI16863,00Sem+os+sertanistas+teria+sido+pior.html

Felipe Milanez
De São Paulo
Em 03/11/2010

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